Bacharel de Direito, estudante de Teologia, pós graduanda de Direito, escritora, empresária e blogueira. Quase mulher, quase gente, quase anjo, quase santa. Apaixonada por nuvens e mar. Nem muito doce e nem tanto amarga. Feita de carne, osso, pele, cor e poema.

2 de novembro de 2015

Cabelo

Vovô tinha cabelos além de brancos, eram alvos, muito finos e em sua cabeça algumas partes eles já tinham desaparecido. Comecei a cortar o cabelo de vovô quando nem sabia atravessar a rua sozinha. No início desenhava um mosaico em sua cabeça, ele não me censurava. Vezes outras, o barbeiro consertava as imperfeições que eu gerava.
Ele se recostava na cadeira, eu sentava em seu colo e aparava os seus pelos da sobrancelha, nariz e orelhas. Ele me deixava passar creme hidratante nos pés também, quando insistia muito besuntava por quase todo corpo, homem daquele tempo não se rendia fácil às vaidades. Mas eu o fazia ser rendido.
Vovô gostava do sol da manhã, principalmente na primavera. Ele sentava na porta de casa e deixava se esquentar, eu sempre acompanhava, dizia que fazia bem para o sangue. Sua bisneta desfrutou assim como eu de seu confortável colo no batente da porta, ela só não pôde retirar sozinha a roupa mais quente à medida que o sol aquecia o corpo, nem conversou sobre o movimento na avenida que avistávamos, tampouco do desenho de nuvens no céu.
Conforme os anos corriam, eu continuava a cortar seu cabelo, melhorei um pouco, talvez. Guardava os tufos branquinhos, depois atirava para cima no quintal. Vovô tinha uma paciência incontável comigo. Não precisava o cabelo crescer muito, eu sempre tinha um motivo para pegar o pente e a tesoura, e aparar. Caso não ficasse bom, a culpa era da tesoura cega, e ele nem se importava.
Ele me deixava lixar as suas unhas das mãos, mas nunca me deixou cortar, dado que tinha um cortador de unhas, incrivelmente limpo e guardava feito joia. Ele era cuidadoso, mesmo enxergando somente com um olho, e neste pingava colírio diariamente, quando estava no seu ninho, eu gotejava bem na parte colorida do olho. Ele se sentia cuidado.
Guardei a tesoura que cortava o seu cabelo, para quem sabe um dia, eu poder cuidar tão bem de meu pai como cuidei de meu avô. Ou ainda, permitir que a pequena Maria experimente do amor em fragmentos de delicadeza.
Nas suas últimas horas de vida ele me aconchegou em seu colo. Enquanto sentado na sua cama, eu desengonçada acomodei minha cabeça e recebi os seus derradeiros e mais significantes carinhos. Ainda não escutei um ‘eu amo você’ tão precioso e memorável quanto o desse dia. E, confesso, ainda não encontrei uma palavra que pudesse definir a beleza desse momento, não consigo recordar sem que algumas lágrimas despenquem dos meus olhos.
Enquanto isso, a vida corre e meu pai não me deixa cortar os seus cabelos.

Juliana Soledade
Crônica produzida para o Jornal A Região, publicado no dia 24 de Outubro de 2015

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