Bacharel de Direito, estudante de Teologia, pós graduanda de Direito, escritora, empresária e blogueira. Quase mulher, quase gente, quase anjo, quase santa. Apaixonada por nuvens e mar. Nem muito doce e nem tanto amarga. Feita de carne, osso, pele, cor e poema.

6 de outubro de 2016

Doce amor


Ainda bem pequena, aprendi a me calar para ouvir o outro, sobretudo quando se trata das pessoas ‘mais velhas’; cresci com senhor ou senhora para os pronomes de tratamento; sigo pedindo desculpas com facilidade, assim como por favor, e obrigado. Tenho uma dificuldade absurda em desejar bom dia mecanicamente e me faz mal ser reprimida em casos de esquecimentos. Não que eu não desejo, descarto a obrigatoriedade, apenas.

Certa vez vi um casal de velhinhos sentados num trem em um diálogo animador.  Se o destino me levou naquele dia até aquele lugar e me pôs a sentar preferencialmente ao lado desse casal, é realmente momento de abrir o coração para escutar com outros sentidos. Ele dizia que quando experimentamos o amor nos tornamos eternos, porque abandonamos o esquecimento, para e com o outro. O papo descontraído não parou por aí, seguiram conceituando a solidez no amor e a salvação que somente ele é capaz de alcançar.

Seguimos viagem, ele como se tivesse em posse de uma ementa, seguindo seu apontamento no mesmo tema. A minha posse era de uma memória por vezes falha, assim segui anotando suas observações quase sempre metafóricas e a cada comparação meu coração palpitava de alegria. Tenho certeza que engrandeço com o sentido figurado de coisas óbvias.

Atravessamos um vilarejo, ele apontava delicadamente para uma saia rodada e comprida numa vitrine, para em seguida afirmar que a essência de que todo o sentimento só é bem arrematado se estiver costurado na bainha do amor. Afirmou que o trem só havia partido com os dois de mãos dadas, porque ambos se elegeram para a longa travessia. A grande maioria daqueles que sofrem de paixão se abandonam nas primeiras paradas. A paixão é pragmática. O amor é uma consagração com absurda dedicação sem limite à condição de tempo. Falava no seu tempo, com respirações profundas e delicadas. A sua companheira fitava-o concentradamente.

A história é calçada em amores rendidos, como Penélope aguardou o seu Ulisses, fiel e sempre inteira, cuja sua beleza só não era maior do que o seu caráter. Do cavaleiro Tristão e a Rainha Isolda, a união do amor para além da alegria. Afinal, o amor sentido é isso: o pacto de laços para depois da felicidade.

Mas tem Drummond que torrencialmente chega falando de amor - ou paixão? -, do riso ao pranto, do imortal somente enquanto durar, no contentamento e no pesar. Na chama que [pode] se apagar. Um amor agitado, inquieto, com características de paixão: ardente. E os gloriosos poetas sempre aclamando que quanto menos correspondido, mais sentido. Amores verdadeiramente reais ou inventados, qual a diferença se nos fizer bem? Foi assim para o deleite do amor platônico de Dante e Beatriz. Foram assim para as ilusões de nosso primeiro e vigésimo amor. Se formos lembrados amorosamente e permitir lembrar-se de alguém do mesmo modo, qual o problema?

Não perguntei-lhes o nome, não procurei saber idade, de onde vinham e para qual o destino seguinte. Acompanhei com os olhos a cruzar o portão de desembarque, acenei mentalmente um adeus, um muito obrigado e um amor alinhavado com fios de ouro. E por fim me agradeci por saber calar, por saber ouvir.


Juliana Soledade

Crônica produzida para o Jornal A Região publicada no dia 08 de Outubro de 2016.


Foto: Créditos da foto

Comentários
0 Comentários

0 comentários:

Postar um comentário