Bacharel de Direito, estudante de Teologia, pós graduanda de Direito, escritora, empresária e blogueira. Quase mulher, quase gente, quase anjo, quase santa. Apaixonada por nuvens e mar. Nem muito doce e nem tanto amarga. Feita de carne, osso, pele, cor e poema.

30 de dezembro de 2014

Do soco ao fim

Deveria constar na bula: proibidas para mulheres de bom coração, sensíveis e bem intencionadas. Ao tratar de seus fiéis desempenhava uma função intrínseca. Dentro de casa a doçura foi secando. Mesmo oferecendo a sobremesa em momentos [e lugares] alternados.

Vigilante nem tanto, concedia a si mesmo o que não permitia aos seguidores: a bebida, a traição e a farra descomedida, uma graça na hipocrisia. A mulher aviava receita a si própria para lidar com o marido: evitar falar em problemas; guardar o melhor pedaço do bolo; garantir a organização da casa e do escritório. Poupado de quase tudo e temido por muitos.

Sempre cobrava exatidão. As palavras deveriam ser bem empregadas, bem como as respostas tinham que ser convincentes. Tudo era motivo de desconfiança. Eu sempre me mantinha calada, mastigando e deglutindo vez ou outra obediência, mas, sobretudo revolta. Era como estar num júri, e que muitas vezes, somente escutava o promotor agressivo que insistia para a condenação do réu.

Os sonhos que caminharam rumo ao altar, ao longo de trinta dias, foram caindo no tapete vermelho, como as pétalas de rosas colombianas que a daminha atirava ao chão. Delicadamente o encantamento foi escorrendo ralo abaixo, bem como a pretensão da materialidade matrimonial e o cumprimento de todas as promessas na frente do sacerdote (“prometo ser-te fiel, amar-te e respeitar-te, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, todos os dias da nossa vida”) fossem válidas, conforme o combinado publicamente.

Havia um desejo de comemorar o primeiro mês de casamento, mesmo engolindo a seco todas as revelações repentinas que o envolviam. Foram perdidas num só segundo. Entre uma fatura de cartão que confirmavam uma traição e um soco, milimetricamente bem calculado para acertar em cheio. Não somente o supercílio dilacerado, mas as razões e a moral também. A dignidade foi atirada no chão junto ao corpo desmaiado, e por muito pouco não foi queimada simultaneamente com o álcool embevecido num corpo de uma sonhadora.

Infelizmente constituiu-se num inexplicável e incompreensível acontecimento de uma muito recém-vida matrimonial. Naquele soco e demais atos de violência praticados foi o cortejo de uma tentativa de vida a dois rumo ao funeral. Morreram sonhos, planos e verdades. Morreram as tentativas vãs de galgar um futuro ao lado de quem se amava. Morreram as certezas tão incertas.

Confesso que o tempo me forneceu as imagens e vivências, eu apenas acrescentei algumas poucas palavras, e na verdade não estarei contando o meu destino. Somente parte dele. Os experimentos traumáticos são indescritíveis em qualquer tipo de linguagem, somente a minha arte da escrita me desafia a expulsar os fantasmas da lembrança, o que testemunho faz é criar aos poucos uma forma de reorganizar essa experiência e torná-la digerível.

O eu-narrador ao externar tamanha dor vivida em tão pouco tempo é dar forma textual a essas experiências, buscando ressignificar um passado e alertar para o perigo que ainda assola a humanidade: a violência doméstica.

A realidade nos traz o poder de ignorar, mas “somos testemunhas e devemos carregar estes fatos”, por isso escrevo e reescrevo em minha memória quatro anos depois.

Juliana Soledade

Itabuna, 29 de dezembro de 14

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