A dor da perda descansa enquanto
dorme, até o momento do abrir de olhos, coçar a cabeça, sentar na cama, e antes
mesmo da primeira oração diária, apoderar da certeza de que não foi um mero
sonho, tão pouco pesadelo dos mais inesperados.
Há pobreza no respeito, mesmo que
o luto deva ser sentido, poucos conseguem entender. O luto é um trabalho de
parto, onde dói a partida, e posteriormente, é preciso conviver com a quarentena.
Efeito doloroso, porém necessário para colher a valorização dos risos futuros.
Lembro que quando eu te perdi
Vovô, eu me sentia como “uma molha encolhida”, segundo Lulu Santos. A dor era
de parto. A quarentena perdurou, e se empendurou em minhas costas, o peso
apenas aumentava com o acumular de horas.
Só conseguir atravessar a
quarentena quando, recente, abracei algumas fotografias, segurei a sua bengala,
sentei na cama onde dormiu por décadas, e por mais terrível que fosse, a sua
certidão de óbito já não me dilacerava ao ver seu nome em letras garrafais
dispostas naquele documento. A dor passou quando eu passei longos minutos
cheirando o seu RG e não existia mais aquele perfume peculiar.
O parto é um exercício
exclusivamente solitário, assim como o luto. Para nascer, é preciso sentir as dores, abandonar o ventre ou renascer. Abrir mão das cascas encrustadas é, sem dúvidas, encarar o mundo com outros
olhos e aprender a viver nesse novo mundo. A morte é um absurdo, porém aceito
silenciosamente.
Não sei quantas lágrimas rolaram
quando apenas escutava o seu primeiro nome por vozes alheias, não sei a
exatidão de textos citando a saudade por você como referência, também não sei
quantas vezes falei sozinha fingindo conversar contigo - disfarçando a falta e cravando
a faca em peito -, já pedi a Deus, Buda, Oxalá, anjos, arcanjos, estrelas, até
para aquela formiga miudinha para lhe trazer de volta, você Vovô, não veio, nem
enquanto estava gélido naquele caixão e as minhas luzes se mantinham apagadas.
A quarenta parece encerrar, quase
quatro anos depois. Me apodero da certeza de que ela, a quarenta, está indo
embora pela falta de desespero em te encarar enquanto morto. Não compreendo o
motivo da inaceitação absurda que foi construída por mim sobre a sua morte, e
tão pouco quero compreender. Ela, a morte, doeu mais em mim do que em você.
Enquanto serenava com a janela entreaberta e sua alma partia para o encontro
com Deus, eu sofria a dor de parto.
A sua partida separou vidas, uniu
sentimentos, afastou ligações, contudo Vô, não há culpa sua nisso, nós adultos complicamos,
e ao invés de apertar os laços, desfazemos, e aqueles conselhos tão bonitos
sobre lealdade, honestidade e verdade ficam apenas nos corações que estavam
abertos para os conselhos e a prática com o exercício diário.
Não há mais camisas, meias ou cuecas,
não existe mais aquele cantinho organizado do seu jeito, as fotografias não
estão mais no lugar, as colchas da família já se foram e os cristais invadiram
outra casa. E em breve, o único elo de toda essa lembrança dolorosa será
desfeita: os tijolos virarão entulhos. Mas o amor estará muito bem guardado
feito uma joia rara da família.
Hoje Vovô, deixo-o em paz, talvez
seja uma das últimas cartas escritas em tom de perda. Entretanto, uma perda
superada e a lágrima hoje derramada sobre as letras são com um sorriso bonito,
iguais àqueles que tínhamos na porta de casa, em que eu sentava no seu colo
para admirarmos o cair do dia.
Até breve,
Sua neta, aquela que fazia
cosquinhas e lhe beijava no ‘cangote’,
Juliana Soledade
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