Bacharel de Direito, estudante de Teologia, pós graduanda de Direito, escritora, empresária e blogueira. Quase mulher, quase gente, quase anjo, quase santa. Apaixonada por nuvens e mar. Nem muito doce e nem tanto amarga. Feita de carne, osso, pele, cor e poema.

28 de fevereiro de 2014

Partejando o luto


A dor da perda descansa enquanto dorme, até o momento do abrir de olhos, coçar a cabeça, sentar na cama, e antes mesmo da primeira oração diária, apoderar da certeza de que não foi um mero sonho, tão pouco pesadelo dos mais inesperados.
Há pobreza no respeito, mesmo que o luto deva ser sentido, poucos conseguem entender. O luto é um trabalho de parto, onde dói a partida, e posteriormente, é preciso conviver com a quarentena. Efeito doloroso, porém necessário para colher a valorização dos risos futuros.
Lembro que quando eu te perdi Vovô, eu me sentia como “uma molha encolhida”, segundo Lulu Santos. A dor era de parto. A quarentena perdurou, e se empendurou em minhas costas, o peso apenas aumentava com o acumular de horas.
Só conseguir atravessar a quarentena quando, recente, abracei algumas fotografias, segurei a sua bengala, sentei na cama onde dormiu por décadas, e por mais terrível que fosse, a sua certidão de óbito já não me dilacerava ao ver seu nome em letras garrafais dispostas naquele documento. A dor passou quando eu passei longos minutos cheirando o seu RG e não existia mais aquele perfume peculiar.
O parto é um exercício exclusivamente solitário, assim como o luto. Para nascer, é preciso sentir as dores, abandonar o ventre ou renascer. Abrir mão das cascas encrustadas é, sem dúvidas, encarar o mundo com outros olhos e aprender a viver nesse novo mundo. A morte é um absurdo, porém aceito silenciosamente.
Não sei quantas lágrimas rolaram quando apenas escutava o seu primeiro nome por vozes alheias, não sei a exatidão de textos citando a saudade por você como referência, também não sei quantas vezes falei sozinha fingindo conversar contigo - disfarçando a falta e cravando a faca em peito -, já pedi a Deus, Buda, Oxalá, anjos, arcanjos, estrelas, até para aquela formiga miudinha para lhe trazer de volta, você Vovô, não veio, nem enquanto estava gélido naquele caixão e as minhas luzes se mantinham apagadas.
A quarenta parece encerrar, quase quatro anos depois. Me apodero da certeza de que ela, a quarenta, está indo embora pela falta de desespero em te encarar enquanto morto. Não compreendo o motivo da inaceitação absurda que foi construída por mim sobre a sua morte, e tão pouco quero compreender. Ela, a morte, doeu mais em mim do que em você. Enquanto serenava com a janela entreaberta e sua alma partia para o encontro com Deus, eu sofria a dor de parto.
A sua partida separou vidas, uniu sentimentos, afastou ligações, contudo Vô, não há culpa sua nisso, nós adultos complicamos, e ao invés de apertar os laços, desfazemos, e aqueles conselhos tão bonitos sobre lealdade, honestidade e verdade ficam apenas nos corações que estavam abertos para os conselhos e a prática com o exercício diário.
Não há mais camisas, meias ou cuecas, não existe mais aquele cantinho organizado do seu jeito, as fotografias não estão mais no lugar, as colchas da família já se foram e os cristais invadiram outra casa. E em breve, o único elo de toda essa lembrança dolorosa será desfeita: os tijolos virarão entulhos. Mas o amor estará muito bem guardado feito uma joia rara da família.
Hoje Vovô, deixo-o em paz, talvez seja uma das últimas cartas escritas em tom de perda. Entretanto, uma perda superada e a lágrima hoje derramada sobre as letras são com um sorriso bonito, iguais àqueles que tínhamos na porta de casa, em que eu sentava no seu colo para admirarmos o cair do dia.

Até breve,

Sua neta, aquela que fazia cosquinhas e lhe beijava no ‘cangote’,


Juliana Soledade

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